terça-feira, 9 de abril de 2013

eu e ela


Estava indo para casa em uma noite quente e bastante agradável. A rua estava vazia, apenas com alguns carros estacionados, e o único barulho que ouvia era o som do vento batendo nas árvores. Na medida em que caminhava, sentia meu corpo fazer parte daquele cenário. Era como se eu pudesse observar-me do alto, como se estivesse tranquilamente sentada no topo de um poste ou em cima do telhado de alguma das várias casas ao redor. “Que noite agradável”, pensava eu. Lembro-me até de ter diminuído a velocidade dos passos, com o intuito de atrasar minha chegada em casa e prolongar o tempo de meu trajeto até o portão. 
De repente, ouço o som de um carro a se aproximar. Olhei para trás e lá vinha ele, com os vidros abertos e exalando o que parecia ser uma música. Por causa da distância, não consegui identificá-la de imediato. Virei-me para frente e continuei a caminhar lentamente. O carro se aproximava. A música tornava-se mais alta. Inicialmente, não dei muito valor àquilo. Porém, alguns segundos antes do carro passar por mim, identifiquei a música:
I want to be the one to walk in the sun
Oh girls they want to have fun
Oh girls just want to have..

No momento em que virei-me para olhar, o carro já passava por mim. O que vi a seguir proporcionou-me uma sensação de liberdade absurda. Dentro do carro havia um homem dirigindo, e ao seu lado havia uma menina. Provavelmente eram pai e filha. Enquanto o pai sorria e batucava no volante, a menina observava a noite com o rosto parcialmente para fora da janela. Ela ria e acompanhava ondas imaginárias de vento com os dedinhos. Seus cabelos dançavam ao som da música e refletiam as luzes da rua. A menina então abriu a boca, ainda sorrindo, na tentativa de abocanhar o ar. Após permanecer com a boca aberta por alguns segundos, gargalhou e voltou a brincar com as ondas de vento.
Parei no lugar em que estava e observei a imagem da menina lentamente dissolver-se na escuridão da noite. As luzes do carro diminuíram até se ofuscarem por completo, e a música agora nada mais era do que um ruído distante. Permaneci parada por alguns instantes, tentando descobrir o significado de tudo aquilo que acabara de acontecer. Inicialmente, parecia não ter significado nenhum. No entanto, depois percebi que, naquela noite tão prazerosa, éramos igualmente felizes. Ao som de Cindy Lauper e alastrando sua juventude pelas ruas em uma noite de verão, aquela menina parecia-me tão mulher! E eu, mulher, parecia tão menina, ao vagar tão inocentemente pela calçada e, sem motivo nenhum, sorrir aos céus. Éramos felizes de diferentes maneiras, mas ambas desfrutavam de um puro e genuíno estado de êxtase. 
Lembro-me de ter me sentido tão feliz naquela noite. Estava feliz simplesmente por me encontrar naquele lugar, naquele momento, e por ter presenciado aquela cena. Desejei desesperadamente poder fotografar aquilo que meus olhos haviam testemunhado e, ao ver que não seria possível, fechei os olhos e rapidamente recompus a imagem em minha mente. 
Guardei-a para sempre. 

Naquela noite, após o carro fazer a curva da rua e penetrar a escuridão, ambas sorríamos ininterruptamente. 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

bilhete para Mila


Querida Mila,

Desculpe por ter quebrado a parede de casa. Há muito ela nos atrapalhava, e bem, esses dias ambos concordamos que os azulejos eram horríveis. Gosto do nosso apartamento e da maneira com que o ar ventila nele em círculos anti-horários. Agora está melhor ainda, não acha? Querida, um dia você me disse: "Tudo que há de ruim na vida a gente deve simplesmente retirar. É como uma criança que retira a alface que está destruindo a beleza de um prato com arroz, feijão, batata-frita e bife; como se tira o fio de cabelo que caiu sobre a camiseta ou o farelo de borracha sobre as folhas do caderno. Você simplesmente tira. Não é uma escolha, e sim uma necessidade." Querida, acho que levei suas palavras muito a sério e, bem.. tirei a parede. Você precisava ver, eu nem hesitei. Fiz questão de não salvar nenhum azulejo. Sei que no começo você sentirá falta de algo separando nosso quarto da sala, mas isso é uma questão de costume. Ficou tão espaçoso, não acha? Querida, deixemo-nos livres como sempre desejamos, sim? Adoro quando andamos nus pela casa. Parecemos duas crianças. Adoro observá-la admirando as luzes da cidade enquanto nossos cigarros flamejam. Adoro quando acordamos e seu cabelo está todo em pé, e o meu mais ainda. Adoro mergulhar com você em nossos lençóis. Quando brincamos de navio no sofá ou quando nos embebedamos a ponto de só conseguirmos nos arrastar pelos cômodos. Gosto quando é minha amiga, mas mais ainda quando é minha mulher. Gosto de como sabemos conversar abertamente, mas mais ainda de como sabemos apreciar juntos o conforto do silêncio. Gosto de como cuidamos um do outro, mas mais ainda do fato de estarmos juntos não porque precisamos, mas porque queremos. Querida, aquela parede era um desastre. Entende o porquê de eu precisar arrancá-la? Amo nosso apartamento, mas mais ainda o que há dentro dele: amo nós dois. 
Podemos colocar uma estante de livros no lugar.
Ou uma cortina de bambu.
Bem, depois conversamos. 

Com amor e um pouco de arrependimento,
Oliver.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Caligus

Do que és feita, minha Alma?
Quando esvai-te de meus olhos,
És de água triste e calma.
Quando a insônia atormenta,
És angústia violenta.
Ao gritar pela cidade
És da fúria a liberdade.
E nos delírios de minha mente
És a névoa doce e quente.
Entre tragos que se encaixam
És o vento que se sente
Dentre almas que se acham
És a minha, Solitária
E no último suspiro, em celeste renascer
Lá se vais, doce alma,
Caminhar ao alvorecer.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Chv

Rígidas e cruéis são as manhãs cinzentas, e esplêndido o frio que lá fora enfrentas. Ah, doentios são meus olhos que gritam em vão: "Perdoa-me; não espero que compreendas essa minha ríspida necessidade de segurar-lhe a mão!"



Observava-te abolir o uso da palavra
E acompanhar com o olhar as gotas do céu que chorava.
Repentinamente disseste, cochichando:
"Temos música para anestesiar nosso último dia"
Morríamos aos poucos como se não houvesse ninguém olhando
Digo-te, querido amigo: Provavelmente não havia.